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A banalização do mal

Ricardo Gondim

Como? Como o mal conseguiu contaminar de tal maneira a Alemanha que o assassinato sistemático de mais de 6 milhões de judeus aconteceu sem muito protesto? Como as pessoas absorveram o discurso nacionalista até acreditarem na necessidade de eliminar quem se opunha ao partido?

Na análise da expansão da violência e repressão do regime nazi-fascista, algumas palavras surgem com frequência: ruptura e arrebatamento.

Ruptura, porque a perseguição e o esforço de eliminar os judeus exigiram quebra da experiência humana mais básica: o reconhecimento da dignidade do outro. Arrebatamento, porque a euforia política, o fanatismo em relação ao líder, o culto à personalidade, provocaram a suspensão da racionalidade.

Para ruptura e arrebatamento acontecerem, há consenso na afirmação de que foi necessário um acordo tácito entre a sociedade civil, os centros do saber e a própria igreja. A morte sistemática de judeus, ciganos, homossexuais e testemunhas de Jeová necessitava de uma racionalidade. As rupturas não acontecem de forma abrupta. O fanatismo nunca é súbito.

Médicos (Mengele), filósofos (Heidegger), arquitetos (Albert Speer), pastores protestantes (Otto Dibelius) apoiaram, entraram em conluio, e normalizaram a violência. Todos usavam argumentos “consistentes”.

Hannah Arendt escreveu “As origens do totalitarismo” na busca de explicar como os maquinistas que transportavam pessoas em vagões de gado para as câmaras de gás; como soldados tratavam como mera burocracia separar mães das crianças; como pessoas não perceberam que centenas de milhares morriam de fome nos guetos?

O colapso total dos padrões morais, até então percebidos como intocáveis, ruíram com certa lentidão. Depois, mais tarde, na decadência do regime, atrocidades inomináveis aconteciam e as pessoas já não mais percebiam. Arendt chega a afirmar que “Auschwitz não foi crime contra a humanidade, mas, bem mais grave, foi crime contra o status humano”. Tal constatação nos devolve à pergunta inicial: como?

O processo de remoção das pedras no caminho do totalitarismo é sempre meticuloso. Primeiro, criam-se inimigos. Segundo, culpam-se esses inimigos por todos os males da sociedade. Terceiro, um salvador da pátria se apresenta como alguém fora do sistema, eleito por Deus para redimir a todos. Quarto, demonizam-se a imprensa e a liberdade de expressão. Quinto, reprimem-se os desordeiros com violência. Sexto, eliminam-se (desaparecem) os opositores ao avanço do progresso e do esplendor da pátria. O judeu italiano Primo Levi, preso e quase morto em campo de concentração, escreveu um livro, e o título reporta à decadência humana. A pergunta, de novo, indaga sobre o subterrâneo da humanidade: “É isso um homem?”

Para Arendt, os campos de concentração nazistas não eram propriamente campos de extermínio, mas “laboratórios” no experimento da dominação completa. Eram espaços onde pessoas sofriam, esmagadas, até saberem se aceitavam serem transformadas em marionetes. O regime queria aprender o ponto em que as pessoas seguiriam até a morte sem reagirem.

O assassinato assim bem estruturado, bem consolidado, serviria a um bem maior: o estabelecimento de um mundo seguro e próspero. O regime distribuiu os papeis meticulosamente; foram espalhados para que as pessoas não se sentissem diretamente responsáveis.

“Eu apenas cumpria ordens”, foi o argumento principal de Adolfo Eichmann. E assim por diante: a soldado recepcionista também afirmou: “Eu só carimbava papéis”. O enfermeiro que ajudava Menguele a conduzir o experimento de trocar a cor dos olhos de judeus em azul repetiu: “Eu só dava injeção”.  Nessa toada, sem pessoas diretamente responsáveis, todos se sentiam em paz para dormir à noite, brincar com os filhos e ter orgasmo na hora do sexo. E a máquina de matar rodava sem muita oposição.

Quem calou era corresponsável, mesmo sem admitir. Primo Levi concluiu: “não se pode afirmar que os alemães aceitaram levianamente a carnificina, todavia, sem a cumplicidade tácita deles ela jamais ocorreria”.

O Brasil pode dar os primeiros passos rumo a um neonazismo. A história não perdoará os que nesses estágios iniciais calaram. Qualquer silêncio significa cumplicidade. Lá no futuro, quando barbáries tomarem vulto e o mal se banalizar, não valerá o argumento: “Ah, eu fui ingênuo”.

Soli Deo Gloria

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